
Tenho apenas duas mão se o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige na confluência do amor.
Quando me levantar,o céu
estará morto e saqueado
,eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordaçãodo
sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
(poema: Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade)
Os poemas de Sentimento do mundo foram produzidos entre 1935 e 1940. São 28 no total. Poema: Sentimento do mundo, o primeiro poema (que deu nome ao livro) revela a visão-de-mundo do poeta: não é alegre, antes, é cheia da realidade que sempre nos estarrece, porque, por mais que sonhemos, a realidade geralmente é dura e muito desafiante. O poeta inicia (estrofe 1) indicando suas limitações para ver o mundo: “Tenho apenas duas mãos”; mas aponta, em seguida, alguns elementos auxiliares que o ajudarão a suprir suas deficiências de visão: escravos, lembranças e o mistério do amor (versos 3 a 5); escravos podem ser os meios escusos de que nos utilizamos para tocar a vida e decifrá-la e dela nos aproveitarmos.
Mãos dadas
O poeta reafirma a sua consciência da existência de outros homens, seus compa-nheiros. Com eles é que se sente de mãos dadas – e renunciou aos seus temas pessoais: uma mulher, uma história, a paisagem vista da janela. Não mais se refugiará na solidão porque o que lhe interessa é o tempo presente em que se acha inserido, e os ho-mens que o cercam.
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer,
a paisagem vista [da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por
[serafins.
O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.