quarta-feira, 5 de maio de 2010

SENTIMENTO DO MUNDO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Tenho apenas duas mão se o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige na confluência do amor.
Quando me levantar,o céu

estará morto e saqueado

,eu mesmo estarei morto,

morto meu desejo, morto

o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram

que havia uma guerra

e era necessário

trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,

anterior a fronteiras,

humildemente vos peço

que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,

eu ficarei sozinho

desfiando a recordaçãodo

sineiro, da viúva e do microcopista

que habitavam a barraca

e não foram encontrados

ao amanhecer

esse amanhecer

mais noite que a noite.


(poema: Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade)

Os poemas de Sentimento do mundo foram produzidos entre 1935 e 1940. São 28 no total. Poema: Sentimento do mundo, o primeiro poema (que deu nome ao livro) revela a visão-de-mundo do poeta: não é alegre, antes, é cheia da realidade que sempre nos estarrece, porque, por mais que sonhemos, a realidade geralmente é dura e muito desafiante. O poeta inicia (estrofe 1) indicando suas limitações para ver o mundo: “Tenho apenas duas mãos”; mas aponta, em seguida, alguns elementos auxiliares que o ajudarão a suprir suas deficiências de visão: escravos, lembranças e o mistério do amor (versos 3 a 5); escravos podem ser os meios escusos de que nos utilizamos para tocar a vida e decifrá-la e dela nos aproveitarmos.


Mãos dadas
O poeta reafirma a sua consciência da existência de outros homens, seus compa-nheiros. Com eles é que se sente de mãos dadas – e renunciou aos seus temas pessoais: uma mulher, uma história, a paisagem vista da janela. Não mais se refugiará na solidão porque o que lhe interessa é o tempo presente em que se acha inserido, e os ho-mens que o cercam.


Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,

não direi os suspiros ao anoitecer,

a paisagem vista [da janela,

não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por

[serafins.

O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes,

a vida presente.

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